Quando Bruna Marquezine revelou, no programa “Angélica ao Vivo”, que está passando por avaliação para TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e Autismo (TEA), o trecho em que ela conta que perdeu a papelada dos testes virou meme rapidamente.
Por trás da brincadeira, porém, existe um fenômeno muito sério: cada vez mais, mulheres adultas estão se reconhecendo em características de neurodivergência e buscando, pela primeira vez, um diagnóstico formal. Não porque “virou moda”, mas porque, finalmente, temos linguagem, informação e espaço para olhar para essas experiências com menos julgamento e mais ciência.
Não é modinha: é correção de uma invisibilidade histórica
Por décadas, os principais estudos sobre autismo foram feitos quase exclusivamente com meninos. Uma análise recente mostrou que cerca de 70% das pesquisas de modelos cerebrais de autismo incluíram apenas homens ou pouquíssimas mulheres.
Isso significa que os critérios que usamos para reconhecer o autismo foram construídos olhando majoritariamente para como o autismo aparece em meninos: mais agitação, comportamentos considerados “escandalosos”, interesses restritos muito visíveis. Meninas, por outro lado, costumam ser socialmente ensinadas a serem discretas, agradáveis, adaptáveis.
O resultado é um atraso enorme no reconhecimento: dados apontam que uma parcela significativa das mulheres autistas recebe o diagnóstico apenas na idade adulta, enquanto a maioria dos meninos é investigada ainda na infância.
A vida inteira tentando “dar conta” de um padrão que não foi feito pra elas.
Antes de chegarem a uma avaliação, muitas mulheres carregam rótulos dolorosos:
- “Preguiçosa”
- “Desorganizada”
- “Muito sensível”
- “Difícil de lidar”
- “Dramática”
A mente está sempre acelerada, mas as tarefas do dia a dia parecem travar. Elas podem se destacar em algumas áreas específicas (hiperfoco), ao mesmo tempo em que sofrem com coisas consideradas “básicas”: responder mensagens, organizar a casa, gerenciar horários, manter concentração em atividades repetitivas.
Além disso, existe uma fadiga social intensa: depois de reuniões, aulas, encontros de família ou eventos, o corpo pede desligar de tudo. Qualquer barulho, luz forte ou contato mais invasivo pode ser vivido como um ataque. E isso não é frescura, é sobre como o cérebro processa estímulos sensoriais.
Sem um nome para isso, muitas mulheres passam anos se sentindo quebradas, insuficientes, “defeituosas”.
Camuflagem: a adaptação que salva… e cobra caro
Uma das explicações para o diagnóstico tardio em mulheres é a chamada camuflagem social.
Desde cedo, muitas meninas aprendem a observar as outras pessoas e imitar o comportamento considerado adequado: como rir, quando falar, o que dizer em determinada situação. Elas decoram scripts sociais para não parecer “estranhas”.
Por fora, isso funciona. No trabalho, na escola, na família, elas parecem típicas.
Por dentro, custa caro:
- Exaustão extrema depois de interações sociais;
- Crises de choro ou colapso quando chegam em casa;
- Sensação de viver um personagem o tempo todo;
- Medo constante de ser “descoberta” como alguém inadequada.
A crise, nesses casos, não é um ataque ou uma birra: é o corpo dizendo “não dá mais”.
O papel do diagnóstico: etiqueta ou bússola?
Muita gente ainda tem medo da palavra “diagnóstico”, como se fosse uma sentença ou uma caixa que limita.
Mas, na prática, para quem passa a vida sem entender por que tantas coisas parecem difíceis, um diagnóstico pode funcionar muito mais como bússola do que como etiqueta. Ele ajuda a:
- Dar sentido a comportamentos e dificuldades que antes eram vistos como “falhas de caráter”;
- Romper com anos de culpa e autocrítica;
- Acessar tratamentos, terapias e estratégias de apoio mais adequadas;
- Comunicar necessidades de forma mais clara em casa, no trabalho e nos relacionamentos.
Não significa reduzir a pessoa a um laudo. Significa, justamente, enxergar sua história com mais profundidade.
“E se eu me reconheço nisso tudo?”
Ver uma figura pública como Bruna Marquezine falando em público sobre estar em avaliação faz muitas mulheres pensarem:
“E se eu também for neurodivergente e só nunca ninguém percebeu?”
Se você se identifica com vários pontos desse texto, alguns caminhos possíveis são:
- Buscar informação de qualidade: ler sobre autismo e TDAH em fontes confiáveis, especialmente materiais produzidos por profissionais especializados e por pessoas neurodivergentes;
- Observar sua própria trajetória: lembrar da infância, da escola, dos primeiros empregos, das relações. Onde a sensação de inadequação aparece com mais força?
- Conversar com profissionais de saúde: psiquiatras, neurologistas, psicólogos e equipes multiprofissionais com experiência em neurodesenvolvimento podem orientar se faz sentido partir para uma avaliação formal.
Importante:
Este texto não substitui uma consulta. Ele não é um teste, nem um diagnóstico. É um convite para olhar para sua história com mais carinho e, se fizer sentido, buscar apoio especializado.
Como família, amigos e empresas podem acolher melhor?
Nem todo mundo vai passar por uma avaliação formal, mas todos nós podemos tornar o mundo um pouco menos hostil para pessoas neurodivergentes. Algumas atitudes ajudam muito:
- Não minimizar sinais de cansaço, crises ou sobrecarga exagerada.
- Evitar rótulos como “dramática”, “difícil” ou “preguiçosa” sem entender o contexto.
- Perguntar o que ajuda de verdade: menos barulho? Pausas? Explicações mais claras?
- Em espaços de trabalho, considerar adaptações simples de rotina, comunicação e ambiente.
Às vezes, pequenas mudanças externas aliviam uma sobrecarga interna que vem sendo carregada há anos.
A fala de Bruna, assim como relatos de tantas outras mulheres, é um lembrete poderoso: não existe um único jeito “certo” de funcionar no mundo.
Talvez, por muito tempo, você tenha acreditado que o problema era você. Que faltava força de vontade, disciplina, maturidade. Mas, à medida que aprendemos mais sobre neurodivergência, fica claro que, muitas vezes, o problema está em um padrão que nunca foi pensado para todos os cérebros.
Se você se identificou com esse tema, talvez seja hora de trocar a pergunta “o que tem de errado comigo?” por “o que está acontecendo comigo e como posso me cuidar melhor?”.
Esse movimento não apaga o que você viveu. Mas pode transformar o futuro em um caminho com mais direção, menos culpa e muito mais acolhimento.

